Em mensagem datada de 13 de junho passado, dia de Santo Antônio, o papa Francisco nos ofereceu uma reflexão para animar o IV Dia Mundial dos Pobres, tradicionalmente celebrado no 33º Domingo do Tempo Comum. Neste ano de 2020, este domingo cai no dia 15 de novembro vindouro. Aqui no Brasil é também o dia das eleições municipais, quando os pobres deste país, através de seu voto, buscarão interferir nas definições das políticas públicas em suas cidades.
Francisco escolheu como lema para este dia um versículo tirado do livro de Jesus Ben Sirac, conhecido como Sirácida (Sir) ou também como livro do Eclesiástico (Eclo). O lema é “Estende tua mão ao pobre” (Sir 7,32). Ao fazer esta escolha, o papa buscou inspiração na sabedoria popular bíblica e na caminhada da Igreja na América Latina. Isso porque em seu livro, Ben Sirac sistematiza a contribuição sapiencial ou as regras práticas caseiras, expressadas nos provérbios coletados e organizados por ele. Mas as palavras deste sábio judeu foram muito importantes para uma corajosa pastoral em defesa dos povos indígenas.
Ben Sirac foi um escriba judeu que viveu em Jerusalém nas primeiras décadas do século II a.C. Ou seja, um tempo entre 200 a 180 a.C. Ele escreveu seu livro buscando preservar a sabedoria popular diante da avassaladora cultura grega, que estava sendo imposta na Judeia a partir das classes altas, interessadas em estar de bem com o império grego. Seu trabalho foi recolher “sábias instruções e provérbios equilibrados” (Sir 50,27) ditos e preservados pelas famílias. Nestes ensinamentos transparece a espiritualidade de um homem fiel e piedoso. Diante das desigualdades da sociedade de sua época, Ben Sirac é agudo em sua análise sociopolítica. Segundo ele, não podemos ser “insensíveis ao olhar suplicante do pobre” (cf. Sir 4,1-10). Ele denuncia com vigor a riqueza como a grande ilusão que corrompe as pessoas (Sir 5,1-8) e provoca uma escandalosa desigualdade social: “Pode a panela de ferro conviver com a panela de barro? O rico comete injustiças e ainda ameaça. O pobre é injustiçado e ainda precisa pedir desculpas” (Sir 13,3).
Ben Sirac faz denúncias pesadas contra o acúmulo de riqueza e contra o lucro do Mercado. Diz ele: “muitos pecam por amor ao lucro. Assim como entre as pedras da rua existe espaço para fincar uma estaca, assim também entre a compra e a venda de alguma coisa existe espaço para entrar o pecado do lucro” (Sir 27,1-3). Mas foi a pregação de Ben Sirac contra uma prática religiosa que legitima a injustiça (cf. Sir 34,18 até 35,24) que fez com que este sábio judeu provocasse uma das mais radicais conversões na época da colonização das Américas.
Bartolomeu de Las Casas era um clérigo espanhol que veio para a América junto com as expedições de conquista. Em 1512 ele tomou parte ativa na colonização de Cuba. Recebeu como paga de seus serviços terras e índios escravizados. Logo depois, preparando-se para celebrar, ele leu a pregação de Ben Sirac denunciando uma religião a serviço da injustiça. Esta leitura caiu fundo em Las Casas que entrou num violento e radical processo de conversão. Num primeiro momento ele devolveu seus escravos ao governador espanhol. Entre 1512 e 1520 ele busca construir projetos de colonização onde pudesse haver uma harmonia entre espanhóis e indígenas. Cedo ele percebeu que a ganância dos espanhóis pelo ouro e pelo lucro invalidavam seus esforços. Em 1521, já missionário dominicano, voltou-se totalmente para defesa dos povos indígenas. Seus trabalhos de denúncia da exploração e dos maus tratos aos indígenas acabaram levando-o até à corte real na Espanha. Sempre inspirado pela passagem de Ben Sirac, Las Casas falou assim ao rei da Espanha: “é injusto e tirânico tudo o que se comete aos índios destas terras. Tudo o que a Espanha faz contra os índios é injusto, cruel e ilegal. Não existe nenhum argumento teológico, filosófico ou jurídico que justifique qualquer invasão…”
Ao escolher este versículo de Ben Sirac como lema do Dia Mundial dos Pobres, Francisco nos coloca em sintonia com as outras propostas para este ano de 2020. Na CF-2020, o lema era tirado da parábola do Bom Pastor: “Viu – Sentiu compaixão – Cuidou dele”. No Mês da Bíblia estudamos o livro do Deuteronômio com o lema “Abre tua mão para teu irmão” (Dt 15,11). Agora concluímos este ano como o lema “Estende tua mão ao pobre” (Sir 7,32). De fato, este ano tão atribulado, marcado por uma pandemia que nos isolou e nos afastou das comunidades, frustrou todas as nossas iniciativas pastorais. Que estes três lemas nos inspirem e nos animem a seguir adiante.
Você pode ler o primeiro artigo do colunista Orofino através do link: https://portaldascebs.org.br/2020/10/13/a-fundamentacao-biblica-da-enciclica-fratelli-tutti/